Texto de Joana Guimarães - Maio 2009
Daqui de onde estou vejo: algumas donas de casa enérgicas que puxam uns carrinhos aos quadrados perfurados por talos verdes, um velhinho que aperta na mão um pequeno saco com morangos, uma família inteira com os braços esticados até aos joelhos pelo peso das alcofas, um pedinte atento às frutas que rolam para baixo das bancas e uns estrangeiros enormes, de sandálias, loiros e felizes por terem aterrado num lugar tão genuíno.
A praça reúne - na sua enorme barriga e debaixo do seu amontoado de toldos às cores - homens e mulheres, pobres e ricos, velhos e novos, locais e forasteiros.
Na boca de cena estão os vendedores. Começam a chegar por volta das duas da manhã. Vêm nas suas carrinhas carregadinhas de frutas, legumes e flores, a rasgar a escuridão do vale da Ribeira das Vinhas onde se ergue o mercado de Cascais.
E aqui é melhor abrir um parêntesis para o que se vai tentar que seja uma breve explicação: este mercado, inaugurado em 1952, tem uma estrutura coberta onde diariamente funcionam mercados de peixe, fruta e hortaliças. Mas aquilo que descrevo neste texto, o chamado mercado saloio, acontece nos dias de praça, às quartas e aos sábados, no espaço ao ar livre delimitado por essa estrutura, e chama-se assim porque a maior parte dos vendedores e dos produtos vêm da zona saloia. Fim de parêntesis.
Como dizia, os vendedores rasgam a escuridão com os faróis das suas carrinhas. Mas isso é agora, porque não há tantos anos como isso, muitos atravessavam a serra de Sintra a pé com os burros albardados ao lado, durante a noite, para estarem de madrugada a montar o seu estaminé no mercado.
Semanalmente, desde há anos (para alguns há tantos que ainda se lembram do tempo em que o mercado era perto da praia da Ribeira), a feira faz-se de madrugada e desfaz-se ao romper da tarde. Faz-se e desfaz-se todas as semanas com sol, com vento, com frio, com chuva. Semanalmente, a abundância da terra como uma oferenda no interior da vida urbana.
Atrás das suas bancas improvisadas, elas de avental eles de boné, os vendedores são verdadeiros performers. Tratam os fregueses por meu amor, minha linda e meu querido, numa intimidade que atravessa todas as barreiras sociais, mexem-se e gesticulam como se fossem habitados por uma memória ancestral da arte-de-ser-feirante e fazem piadas entre os frutos da terra e o corpo humano com o à vontade de um actor em palco.
Soltam-se risos, trocam-se moedas, há breves diálogos, palavras gritadas, passos constantes, barulhos de sacos e lá ao longe o som do trânsito, tão longe quanto o som das vozes quando se adormece na praia.
Há uma espessura musical no murmúrio de fundo da feira. E esta é apenas uma das muitas experiências estéticas possíveis, e talvez a menos óbvia. Como são muitas é aconselhável abrir-se a porta a um sentido de cada vez. É que aqui vendem-se alimentos frescos, arrancados da terra, não embalados e, por isso, de tudo se desprende um cheiro, uma cor e uma forma. Pode-se andar de nariz espetado a sorver o ar ou de olhos bem abertos como se se estivesse numa exposição. E pode-se mexer e tocar e manusear e escolher e provar.
Os dias de praça em Cascais revolvem toda a vila que vê a sua pulsação e o seu ritmo alterados por o que parece ser uma nova forma colectiva de habitar a rua: mais cedo, mais gente, mais cores, mais carros, mais sons, mais movimento.
E depois como uma festa que chega ao fim vão-se dissipando os barulhos, desmontam-se as bancas, as carrinhas debandam e os fregueses desaparecem com as suas compras. Se não fossem os sacos de plástico perdidos a esvoaçarem ao vento e o lixo típico da feira que a câmara virá limpar mais tarde, não poderíamos imaginar o que ali aconteceu.
2014-06-05
Texto de Joana Guimarães - Maio 2009
Daqui de onde estou vejo: algumas donas de casa enérgicas que puxam uns carrinhos aos quadrados perfurados por talos verdes, um velhinho que aperta na mão um pequeno saco com morangos, uma família inteira com os braços esticados até aos joelhos pelo peso das alcofas, um pedinte atento às frutas que rolam para baixo das bancas e uns estrangeiros enormes, de sandálias, loiros e felizes por terem aterrado num lugar tão genuíno.
A praça reúne - na sua enorme barriga e debaixo do seu amontoado de toldos às cores - homens e mulheres, pobres e ricos, velhos e novos, locais e forasteiros.
Na boca de cena estão os vendedores. Começam a chegar por volta das duas da manhã. Vêm nas suas carrinhas carregadinhas de frutas, legumes e flores, a rasgar a escuridão do vale da Ribeira das Vinhas onde se ergue o mercado de Cascais.
E aqui é melhor abrir um parêntesis para o que se vai tentar que seja uma breve explicação: este mercado, inaugurado em 1952, tem uma estrutura coberta onde diariamente funcionam mercados de peixe, fruta e hortaliças. Mas aquilo que descrevo neste texto, o chamado mercado saloio, acontece nos dias de praça, às quartas e aos sábados, no espaço ao ar livre delimitado por essa estrutura, e chama-se assim porque a maior parte dos vendedores e dos produtos vêm da zona saloia. Fim de parêntesis.
Como dizia, os vendedores rasgam a escuridão com os faróis das suas carrinhas. Mas isso é agora, porque não há tantos anos como isso, muitos atravessavam a serra de Sintra a pé com os burros albardados ao lado, durante a noite, para estarem de madrugada a montar o seu estaminé no mercado.
Semanalmente, desde há anos (para alguns há tantos que ainda se lembram do tempo em que o mercado era perto da praia da Ribeira), a feira faz-se de madrugada e desfaz-se ao romper da tarde. Faz-se e desfaz-se todas as semanas com sol, com vento, com frio, com chuva. Semanalmente, a abundância da terra como uma oferenda no interior da vida urbana.
Atrás das suas bancas improvisadas, elas de avental eles de boné, os vendedores são verdadeiros performers. Tratam os fregueses por meu amor, minha linda e meu querido, numa intimidade que atravessa todas as barreiras sociais, mexem-se e gesticulam como se fossem habitados por uma memória ancestral da arte-de-ser-feirante e fazem piadas entre os frutos da terra e o corpo humano com o à vontade de um actor em palco.
Soltam-se risos, trocam-se moedas, há breves diálogos, palavras gritadas, passos constantes, barulhos de sacos e lá ao longe o som do trânsito, tão longe quanto o som das vozes quando se adormece na praia.
Há uma espessura musical no murmúrio de fundo da feira. E esta é apenas uma das muitas experiências estéticas possíveis, e talvez a menos óbvia. Como são muitas é aconselhável abrir-se a porta a um sentido de cada vez. É que aqui vendem-se alimentos frescos, arrancados da terra, não embalados e, por isso, de tudo se desprende um cheiro, uma cor e uma forma. Pode-se andar de nariz espetado a sorver o ar ou de olhos bem abertos como se se estivesse numa exposição. E pode-se mexer e tocar e manusear e escolher e provar.
Os dias de praça em Cascais revolvem toda a vila que vê a sua pulsação e o seu ritmo alterados por o que parece ser uma nova forma colectiva de habitar a rua: mais cedo, mais gente, mais cores, mais carros, mais sons, mais movimento.
E depois como uma festa que chega ao fim vão-se dissipando os barulhos, desmontam-se as bancas, as carrinhas debandam e os fregueses desaparecem com as suas compras. Se não fossem os sacos de plástico perdidos a esvoaçarem ao vento e o lixo típico da feira que a câmara virá limpar mais tarde, não poderíamos imaginar o que ali aconteceu.
2014-06-05