Miradouro de São Pedro de AlcântaraJardim António Nobre

Antes do terramoto de 1755, fizeram-se planos de uma grandiosa Mãe d'Água para este local, um enorme depósito que, prolongando o aqueduto, deveria abastecer o lado oriental da cidade. Porém, a terra tremeu, a ideia desfez-se e, sobre as muralhas, nada mais do que uma feira com arraial por lá se ergueu. Em 1830, a Guarda Real da Polícia tomou conta da ocorrência e do terreno e, construindo perto as suas cavalariças, aproveitou para plantar o terreno, conhecido então como a "Horta do Corpo da Polícia". Logo em 1835, a Câmara tomou a horta para a transformar em jardim e deu-lhe o aspecto que ainda hoje conhecemos, acrescentando um patamar inferior, acessível por duas escadas de ferro, de desenho ordenado e povoado por um curioso conjunto de bustos confundindo heróis mitológicos e navegadores portugueses, onde convivem Vénus e Ulisses com Vasco da Gama e Camões. Encerrava ao final da tarde, quando os candeeiros de gás se alumiavam no terraço cimeiro, reflectindo-se no lago, vindo dos jardins da Quinta da Bemposta, quando aí se construiu o Paço da Rainha. Rapidamente, o jardim se tornou um passeio nocturno concorrido dos liboetas, merecendo até a visita da Rainha D. Maria Pia que perante o panorama se revelou, também ela, "maravilhada". Porém, à medida que a noite ia avançando, decaía a frequentação: as costureirinhas e operários que ali paravam davam o seu poiso aos saloios e estes aos vadios. Pior, o lugar tornou-se ponto trágico, favorito de desconsolados suicidas, um hábito a que novas grades vieram obstar. Só em 1882, com as obras da Av. da Liberdade e a destruição do favorito Passeio Público, São Pedro de Alcântara ganha estatuto e entra definitivamente na moda da alta roda. Ergue-se um coreto com curiosos capitéis em forma de lira para dar música aos janotas lisboetas. Alugam-se cadeirinhas de ferro para ver números diversos de actores e "divettes". No piso superior, instala-se um líndissimo e romântico quiosque, com esplanada abrigada sob um largo toldo hexagonal em ferro forjado, servindo os refrescos lisboetas --- groselhas, capilés, orchatas e carapinhadas. E, no tabuleiro inferior, inaugura-se até um "Eden Concerto", abrilhantado com atrações teatrais e musicais. Em 1884, todo o jardim se enche de curiosos e empolgados lisboetas a ver para crer o acrobata francês Henry Beudet que larga do Castelo de São Jorge num balão de ar quente pelos ceús da cidade. Há gravuras, fotografias e postais inúmeros que testemunham esta época gloriosa e sim, em todas, garantimos que se distinguem as árvores, muitas e frondosas.
Já no séc. XX, o tabuleiro de baixo viria a conhecer novos e mais pequenos ocupantes. Em 1933, Fernanda de Castro, escritora casada com António Ferro, inaugura aqui o primeiro de muitos "Parques Infantis". Pedindo dinheiro a Ricardo Espírito Santo e pedinchando um projecto ao amigo arquitecto Jorge Segurado para uma construção de madeira, chama o artista Tom para conceber os móveis miniatura e a pintora Sarah Affonso para decorar a sala principal. Esta começara então a namorar com o genial Almada Negreiros e juntos, ilustram as paredes com desenhos inspirados nos contos infantis. No exterior, há agora "baloiços, um escorregadio, um pequeno carroussel e alguns triciclos" para uma centena de crianças da zona.
Com o tempo, tudo se transforma e muito se vai - coretos, quiosques ou jardins infantis artísticos. Mas, neste lugar que tem nome de poeta, estátua de jornalista e alcunha de santo (António Nobre é o seu nome oficial como jardim; a estátua colocada em 1904 homenageia Eduardo Coelho, o fundador do Diário de Notícias; e a alcunha, pela qual todos o conhecem, foi pedida emprestada ao convento fronteiro), há algo que nunca muda. No seu inesquecível Guia de Portugal, os escritores Raúl Brandão e Raúl Proença registaram-no: "Mas é ao entardecer que este panorama (...) atinge o deslumbramento. Há ali uma janelinha que de súbito arde em luz doirada, como se a iluminassem de repente. Acende-se outra e outra ainda; e dentro em pouco, na nossa frente, todas as vidraças se incendeiam. Lisboa inteira refulge em labareda, e a cor transmuda-se, e as janelas na pompa ensanguentada do poente, são já de fogo e púrpura... Depois, uma após outra, as vidraças apagam-se, como se um sopro as fosse percorrendo. Mas ainda lá em cima uma janelinha persiste em arder solitária, como faúlha no rescaldo do fogo chamejante que por momentos consumiu Lisboa, fazendo dela um quadro de apoteose." Esta vista, sim, está exactamente igual. E o extâse continua garantido, fazendo do Jardim de São Pedro de Alcântara um dos locais mais extraordinários de toda a cidade, mais ou menos verde seja ele.

É a mais bela varanda de Lisboa. Daí a vista sobrevoa a Avenida com liberdade, alcança o Castelo e desce até à Baixa, mergulhando finalmente no rio. O jardim de são pedro de alcântara, um dos mais belos miradouros da capital, foi devolvido à cidade em Fevereiro, após anos demorados de obras e tapumes. Está lindo, como sempre foi, e mais limpo. Demasiado limpo, aliás, criticam alguns que o lembram verde e lamentam os cachos de glícinias, o grande muro de buganvílias escarlates, as árvores frondosas de outros tempos, os peixes vermelhos entre as avencas da cascata ou até o pequeno pavilhão de madeira - todos desaparecidos numa nova concepção de espaço verde, decididamente mais urbano. Os defensores asseguram que lhe respeitaram a traça original oitecentista. Eis um excelente pretexto para daqui, recostados nos seus bancos preguiçosos, investigarmos a sua história. 

2008-05-31


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MORADA
Jardim de São Pedro de Alcântara
Lisboa (Bairro Alto)

Antes do terramoto de 1755, fizeram-se planos de uma grandiosa Mãe d'Água para este local, um enorme depósito que, prolongando o aqueduto, deveria abastecer o lado oriental da cidade. Porém, a terra tremeu, a ideia desfez-se e, sobre as muralhas, nada mais do que uma feira com arraial por lá se ergueu. Em 1830, a Guarda Real da Polícia tomou conta da ocorrência e do terreno e, construindo perto as suas cavalariças, aproveitou para plantar o terreno, conhecido então como a "Horta do Corpo da Polícia". Logo em 1835, a Câmara tomou a horta para a transformar em jardim e deu-lhe o aspecto que ainda hoje conhecemos, acrescentando um patamar inferior, acessível por duas escadas de ferro, de desenho ordenado e povoado por um curioso conjunto de bustos confundindo heróis mitológicos e navegadores portugueses, onde convivem Vénus e Ulisses com Vasco da Gama e Camões. Encerrava ao final da tarde, quando os candeeiros de gás se alumiavam no terraço cimeiro, reflectindo-se no lago, vindo dos jardins da Quinta da Bemposta, quando aí se construiu o Paço da Rainha. Rapidamente, o jardim se tornou um passeio nocturno concorrido dos liboetas, merecendo até a visita da Rainha D. Maria Pia que perante o panorama se revelou, também ela, "maravilhada". Porém, à medida que a noite ia avançando, decaía a frequentação: as costureirinhas e operários que ali paravam davam o seu poiso aos saloios e estes aos vadios. Pior, o lugar tornou-se ponto trágico, favorito de desconsolados suicidas, um hábito a que novas grades vieram obstar. Só em 1882, com as obras da Av. da Liberdade e a destruição do favorito Passeio Público, São Pedro de Alcântara ganha estatuto e entra definitivamente na moda da alta roda. Ergue-se um coreto com curiosos capitéis em forma de lira para dar música aos janotas lisboetas. Alugam-se cadeirinhas de ferro para ver números diversos de actores e "divettes". No piso superior, instala-se um líndissimo e romântico quiosque, com esplanada abrigada sob um largo toldo hexagonal em ferro forjado, servindo os refrescos lisboetas --- groselhas, capilés, orchatas e carapinhadas. E, no tabuleiro inferior, inaugura-se até um "Eden Concerto", abrilhantado com atrações teatrais e musicais. Em 1884, todo o jardim se enche de curiosos e empolgados lisboetas a ver para crer o acrobata francês Henry Beudet que larga do Castelo de São Jorge num balão de ar quente pelos ceús da cidade. Há gravuras, fotografias e postais inúmeros que testemunham esta época gloriosa e sim, em todas, garantimos que se distinguem as árvores, muitas e frondosas.
Já no séc. XX, o tabuleiro de baixo viria a conhecer novos e mais pequenos ocupantes. Em 1933, Fernanda de Castro, escritora casada com António Ferro, inaugura aqui o primeiro de muitos "Parques Infantis". Pedindo dinheiro a Ricardo Espírito Santo e pedinchando um projecto ao amigo arquitecto Jorge Segurado para uma construção de madeira, chama o artista Tom para conceber os móveis miniatura e a pintora Sarah Affonso para decorar a sala principal. Esta começara então a namorar com o genial Almada Negreiros e juntos, ilustram as paredes com desenhos inspirados nos contos infantis. No exterior, há agora "baloiços, um escorregadio, um pequeno carroussel e alguns triciclos" para uma centena de crianças da zona.
Com o tempo, tudo se transforma e muito se vai - coretos, quiosques ou jardins infantis artísticos. Mas, neste lugar que tem nome de poeta, estátua de jornalista e alcunha de santo (António Nobre é o seu nome oficial como jardim; a estátua colocada em 1904 homenageia Eduardo Coelho, o fundador do Diário de Notícias; e a alcunha, pela qual todos o conhecem, foi pedida emprestada ao convento fronteiro), há algo que nunca muda. No seu inesquecível Guia de Portugal, os escritores Raúl Brandão e Raúl Proença registaram-no: "Mas é ao entardecer que este panorama (...) atinge o deslumbramento. Há ali uma janelinha que de súbito arde em luz doirada, como se a iluminassem de repente. Acende-se outra e outra ainda; e dentro em pouco, na nossa frente, todas as vidraças se incendeiam. Lisboa inteira refulge em labareda, e a cor transmuda-se, e as janelas na pompa ensanguentada do poente, são já de fogo e púrpura... Depois, uma após outra, as vidraças apagam-se, como se um sopro as fosse percorrendo. Mas ainda lá em cima uma janelinha persiste em arder solitária, como faúlha no rescaldo do fogo chamejante que por momentos consumiu Lisboa, fazendo dela um quadro de apoteose." Esta vista, sim, está exactamente igual. E o extâse continua garantido, fazendo do Jardim de São Pedro de Alcântara um dos locais mais extraordinários de toda a cidade, mais ou menos verde seja ele.

É a mais bela varanda de Lisboa. Daí a vista sobrevoa a Avenida com liberdade, alcança o Castelo e desce até à Baixa, mergulhando finalmente no rio. O jardim de são pedro de alcântara, um dos mais belos miradouros da capital, foi devolvido à cidade em Fevereiro, após anos demorados de obras e tapumes. Está lindo, como sempre foi, e mais limpo. Demasiado limpo, aliás, criticam alguns que o lembram verde e lamentam os cachos de glícinias, o grande muro de buganvílias escarlates, as árvores frondosas de outros tempos, os peixes vermelhos entre as avencas da cascata ou até o pequeno pavilhão de madeira - todos desaparecidos numa nova concepção de espaço verde, decididamente mais urbano. Os defensores asseguram que lhe respeitaram a traça original oitecentista. Eis um excelente pretexto para daqui, recostados nos seus bancos preguiçosos, investigarmos a sua história. 

2008-05-31

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